sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Real


Após mais um dia de trabalho cansativo como repositor de estoque, segui meu caminho rumo a minha casa, como faço todos os dias, para depois comer a mesma refeição feita pela minha esposa, o mesmo jeito e tempero há 15 anos e me refiro tanto a comida quanto à Rosana, assistir a mesma programação (se não me engano passará algum filme do Jackie Chan na sessão das 10 horas) para no fim dormir e repetir a mesma rotina amanhã.
Quando chego na esquina da Rua Aflição com a Avenida Desespero (estou me aproximando de casa) eis que esbarro com um pequeno aglomerado de pessoas, com aqueles olhares curiosos e preocupados. Logo deduzo que não se trata de algum artista de rua chamando a atenção daqueles que trafegam, com suas peripécias e habilidades trazidas de algum interior da vida. levado pela curiosidade, tento enfiar minha cara entre alguns cidadãos para me somar ao grupo de pessoas e tentar entender o motivo da "reunião".
No centro da roda humana, encontra-se uma criança.. Pelas condições das roupas (ou chamaria de trapos) o menino deve ser mais um morador de rua. Mais o que esse mendigo tem que está prendendo a atenção de tantas pessoas? Sabemos que a coisa menos interessante a se encontrar na rua é com um mendigo. Quando vemos um, baixamos a cabeça, aceleramos os passos - Será que ele vai me assaltar? Vai pedir dinheiro? ixi, não quero pensar a respeito no que eu poderia ajudá-lo - Essa criança deve ter algo de especial, mas o que? Eis que uma senhora, gorda e com saia roxa até os calcanhares, grita, apontando para o garoto:
- Foi ele sim! Ele tentou me roubar!
Claro, tá explicado.
- Vocês não vão chamar a polícia?
- Mas senhora, ele tentou roubar sua sacola de pães (aponta para o saco de papel que a velha segura firme, tremula ainda por causa do susto) deve estar faminto...
Falou uma mulher de meia idade, explicitamente comovida com a situação.
- Que nada! Ele é um pivete! Ladrãozinho. Tem que levar mesmo é uma surra para ver se endireita!
Exclama tão revoltado um homem, que respingos de sua saliva ficam presos naquele bigode proeminente.
E agora? O que penso a respeito? devemos ou não chamar a polícia. Eu não estava preparado para isso. Já me conformava em chegar logo em casa e ter um pouco de silêncio! Eu mereço, trabalho pra burros, todos os dias, de segunda a sexta, das 8 horas às 18 horas, carregando caixas e mais caixas, de todas as cores e tamanhos. Por um lado o garoto tem razão, ele está faminto e provavelmente poucos realmente dariam comida para ele, alegando que a criança quer dinheiro para comprar drogas. Mas em compensção roubar é errado, é feio! Aí minha cabeça!
- Garoto, por que você fez isso?
Indagou um homem esguio, bem alto, e com um semblante de sensato. Parecia um daqueles juízes corretos que vemos nos filmes.
- Você tentou pegar os pães por que está com fome?
Continuou o esguio.
- Não.
Respondeu a criança, em um tom tímido e assustado.
- Eu sabia! É malandro mesmo!
Retrucou outro homem, um gordo, que tinha dificuldades para respirar e quase ficou sem voz na hora do berro.
- Então por que fez isso?
Perguntou o homem alto.
- Porque me pediram. dentro dessa sacola tem algo bem importante. Me falaram que a senhora pos algo muito valioso na sacola e está escondendo do verdadeiro dono.
- Mas que absurdo! Sou uma senhora de respeito! Como ousa me acusar desse jeito?
- Você tem consciência do que está falando garoto? (homem esguio. Estou começando a chamá-lo de homem sensato).
- Sim. Um homem me pagou 50 reais para...
O menino cai no chão e uma poça de sangue começa a se formar ao redor da sua cabeça. Todos se assustam e saem correndo. Só ficaram o senhor sensato e eu. A senhora gorda, se assusta e deixa cair a sacola do chão e sai correndo. da sacola saem rolando alguns pães e uma espécie de bracelete dourado do tamanho do meu punho com alguns cristais encrustados que parecem diamantes. Os pães ficam enxarcados ao caírem naquela poça de sangue daquela criança, que perdeu sua vida misteriosamente. O homem sábio olha para os lados a procura do possível responsável por enfiar uma bala na cabeça do menino. Eu, não consigo parar de olhar aquela cena. O sangue se espalhando pelo chão, os pães absorvendo lentamente aquele líquido vermelho e o bracelete brilhando no meio daquele fundo vermelho. Sem falar na criança, ali, morta. Muitos pensamentos passaram pela minha cabeça. Adrenalina a mil! Quem teria feito isso e por que? E qual a relação do bracelete com toda essa cena? Azar da criança que foi estar na hora errada. e a senhora? Escondendo uma jóia em uma sacola de pães. Mistério...
Seis horas depois, já na minha casa, não parava de pensar no que tinha acontecido. Eis que percebo que todos os sentimentos ruins que tinha ao voltar para casa tinham sumido. Eu estava feliz! Posso parecer rude, um monstro, mas quero agradecer aquela criança! Uau, que emocionante. São coisas que só vemos em filme e tive o privilégio de ver ao vivo, de verdade. Aconteceu mesmo. Quero agradecê-lo por me fazer fugir daquele dilema social (culpado ou inocente) porque no funfo o que importa não é ser bom ou mau, justo ou injusto, trabalhador ou preguiçoso. O que importa é a emoção, a adrenalina!

Um comentário:

Anonymous coward disse...

Bem-vindo ao deserto do real.