domingo, 9 de janeiro de 2011

Cinzas

Ela não estava preparada para abrir mão daquilo tudo. Era a típica pessoa que "guardava lembranças". Seu armário estava lotado de livros, fotos, presentes, anotações, recados, enfeites. A dispensa não suportava mais caixas carregadas de "memórias" desde seu nascimento. Um costume cultivado desde sua avó, que guardara a primeira rosa, o primeiro bilhete lançado à janela, o vestido de casamento, e foi então passado para a mãe e posteriormente para Marcela. Disciplinada, ela seguiu à risca o hábito e tentara guardar tudo que fosse possível: boletins, fotos, prêmios, entradas de cinema e shows, cartas, cadernos, apostilas, livros, revistas, jóias, roupas, tudo aquilo que fizera ela ser a pessoa que é hoje. Era confortável saber que as lembranças estavam lá, ao seu lado, e que podiam ser consultadas a qualquer momento. O curioso é que Marcela nunca mexeu nesses entulhos. Tudo permanecia intacto, limpo, entretanto aquelas caixas nunca foram reviradas, os livros nunca folheados. Ela separava momentos para "polir" suas lembranças, retirar as películas de sujeira, relocar as caixas e abrir espaço para novas. Não era preciso abri-las. Na verdade, o prazer estava em deixá-las ali, sistematicamente ordenadas... Infância, Colégio Madre Tereza, Escola Ventura Souto, Faculdade, Praia, Amores, Família, Álbuns, Revistas...
Marcela era famosa por seu típico comportamento metódico e perfeccionista. Tudo no lugar certo, na hora certa. Nas festas que organizava, não parava um instante, sempre ocupada, na ânsia de proporcionar o melhor ambiente possível. Tinha mania de limpeza. Não admitia erros. Workaholic. Uma pessoa realmente admirável, esforçada, competente. Sempre fora a melhor aluna, melhor funcionária, melhor cozinheira, dona de casa, esportista. Nada dera errado. exceto desta vez... Enquanto o fogo tornava cinza sua casa perfeita, pela primeira vez Marcela não sabia o que fazer. Congelada diante do fato, os transeuntes que ali passavam não imaginavam que aquela vida perfeita, construída com muito esmero, era a tentativa de manter Marcela distante de si mesma. Ela não focava em seus problemas internos, pois estava ocupada demais organizando sua rotina. E agora? Que desculpa ela terá? Estava nua, desarmada. As únicas coisas que poderia salvar eram as caixas com as lembranças, as memórias intocadas. Enquanto o fogo devorava a casa, as caixas permaneciam intactas, resistindo a fúria das chamas. E Marcela continua va parada, observando tudo. E o fogo parecia evitar as lembranças. Ela podia correr e resgatá-las. Ela não estava preparada para abrir mão daquilo tudo. Foi então que uma viga flamejante atingiu em cheio tudo que encontrava-se dentro da dispensa e com isso a última parte de Marcela foi apagada. Ao final, apenas cinzas. Por um momento ela pensou que esta era uma oportunidade de recomeçar, desta vez sem todos os escudos criados ao longo de sua vida. Talvez fosse o momento de conectar-se às pessoas e principalmente a si própria. Talvez fosse um sinal. Um tempestuoso fluxo de pensamentos iniciara em sua mente. Rapidamente Marcela resolveu isso da maneira que melhor sabia. Organizou as ideias, foi atrás de algumas caixas e preencheu-as com cinzas da antiga casa.

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